O ESTUDO SOBRE A NATUREZA DO CRISTO.
IX — O FILHO DE DEUS E O FILHO DO HOMEM
O título de Filho de Deus, longe de implicar igualdade, é, muito ao contrário, indício de uma submissão. Ora, ninguém é submetido a si mesmo, mas a alguém.
Para que Jesus fosse, em absoluto, igual a Deus, fora preciso que ele existisse, como Deus, de toda a eternidade, isto é, que fosse incriado. Ora, o dogma diz que Deus o gerou desde toda a eternidade; mas quem diz gerou diz criou. Fosse ou não desde toda a eternidade, ele não deixa por isso de ser uma criatura e de estar, como tal, subordinada ao seu Criador. É a idéia que implicitamente se contém no termo Filho.
Nasceu Jesus no tempo? Ou, por outra: houve um tempo, na eternidade passada, em que ele não existia? ou é ele coeterno com o Pai? Tais as sutilezas sobre que disputaram durante séculos. Em que autoridade se apóia a doutrina da coeternidade, que passou ao estado de dogma? Na opinião dos homens que a engendraram. Mas, esses homens em que autoridade fundaram semelhante opinião? Não foi na de Jesus, pois que este se declara subordinado; não foi na dos profetas que o anunciam como o enviado e o servo de Deus. Em que documentos desconhecidos, mais autênticos do que os Evangelhos, encontraram eles tal doutrina? Parece que só na consciência e na superioridade de suas próprias luzes.
Deixemos, pois, essas discussões vãs, que a nada conduzem e cuja própria solução, fosse esta possível, não tornaria melhores os homens. Digamos que Jesus é Filho de Deus, como todas as criaturas, que ele chama a Deus Pai, como nós aprendemos a tratá-lo de nosso Pai. É o Filho bem-amado de Deus, porque, tendo alcançado a perfeição, que aproxima de Deus a criatura, possui toda a confiança e toda a afeição de Deus. Ele se diz Filho único, não porque seja o único ser que haja chegado à perfeição, mas porque era o único predestinado a desempenhar aquela missão na Terra.
Se pode parecer que a qualificação de Filho de Deus apóia a doutrina da divindade, o mesmo já não se dá com a de Filho do homem, que também Jesus deu a si mesmo, em sua missão, e que constituiu objeto de muitos comentários.
Para lhe compreendermos o verdadeiro sentido, temos que remontar à Bíblia, onde a encontramos dada pelo próprio Deus ao profeta Ezequiel.
“Tal a imagem do Senhor, que me foi apresentada. Ao ver aquelas coisas, caí de rosto em terra e ouvi uma voz que me falou assim: Filho do homem, tem-te de pé e eu falarei contigo. — E, tendo-me falado dessa maneira, o Espírito entrou em mim e me firmou nos pés e ouvi que me falava, dizendo: Filho do homem, envio-te aos filhos de Israel, a um povo apóstata, que se retirou de mim. Violaram até hoje, eles e seus pais, a aliança que eu com eles fizera.” (Ezequiel, 2:1 a 3.)
“Filho do homem, eis que eles te prepararam grilhões; acorrentar-te-ão e dali não sairás.” (Idem, 3:25.)
“O Senhor me dirigiu então a palavra, dizendo: — E tu, Filho do homem, ouve o que diz o Senhor Deus à terra de Israel: o fim vem; vem esse fim nos quatro cantos da terra.” (Idem, 7:1 e 2.)
“No décimo dia do décimo mês do nono ano, o Senhor me dirigiu a palavra, dizendo: — Filho do homem, marca bem este dia em que o rei de Babilônia reuniu suas tropas diante de Jerusalém.” (Idem, 24:1 e 2.)
“Disse-me ainda o Senhor estas palavras: — Filho do homem, vou ferir-vos com uma chaga e tirar-vos o que há de mais agradável aos vossos olhos; mas, não me fareis lamentações fúnebres; não chorareis e lágrimas não vos correrão pelas faces. - Gemereis em segredo e não vos enlutareis, como se faz pelos mortos; a vossa coroa se conservará presa à vossa cabeça e tereis nos pés as vossas sandálias; não cobrireis o vosso rosto e não comereis as viandas que se dão aos que se acham de luto. - Falei então pela manhã ao povo e à tarde minha mulher morreu. No dia seguinte, fiz o que Deus me ordenara.” (Idem, 24:15 a 18.)
“O Senhor ainda me falou e disse: — Filho do homem, profetiza com referência aos pastores de Israel; profetiza e dize aos pastores: Eis o que diz o Senhor Deus: Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos; os pastores não apascentam seus rebanhos?” (Idem, 34:1 e 2.)
“Então, eu o ouvi que me falava, dentro da casa; e o homem que me estava próximo disse: — Filho do homem, está aqui o lugar do meu trono, o lugar onde porei meus pés e onde ficarei para sempre no meio dos filhos de Israel e a casa de Israel não profanará mais o meu santo nome no futuro, nem eles, nem seus reis, com as suas idolatrias, com os sepulcros de seus reis, nem com as nobres descendências.” (Idem, 43:6 e 7.)
“Porque, Deus não ameaça como o homem e não entra em furor como o Filho do homem.” (Judith, 8:15.)
É evidente que a qualificação de Filho do homem quer aqui dizer: que nasceu do homem, por oposição ao que está fora da Humanidade. A última citação, tirada do livro de Judith, não permite dúvida quanto ao significado da expressão, usada em sentido muito literal. Deus somente assim designa a Ezequiel, certamente para lhe lembrar que, malgrado ao dom de profecia que lhe fora concedido, ele não deixava de pertencer à Humanidade e a fim de que não se considerasse de natureza excepcional.
Jesus dá a si mesmo essa qualificação com persistência notável, pois só em circunstâncias muito raras ele se diz Filho de Deus. Em sua boca, não pode ter ela outra significação, que não lembrar que também ele pertence à Humanidade, identificando-se desse modo aos profetas que o precederam e aos quais se comparou, aludindo à sua morte, quando disse: Jerusalém, que matas os profetas! A insistência com que ele se designa por filho do homem parece um protesto antecipado contra a qualidade que, segundo previa, lhe seria dada mais tarde, a fim de ficar bem determinado que essa qualidade não saíra de seus lábios.
É de notar-se que, durante essa interminável polêmica que apaixonou os homens por longa série de séculos e que ainda continua, que acendeu fogueiras e fez correr rios de sangue, o que se discutia era uma abstração, a natureza de Jesus, da qual se fizera a pedra angular do edifício, embora deste não falassem e hajam olvidado uma coisa, a que o Cristo disse ser toda a lei e os profetas: o amor de Deus e do próximo e a caridade, que ele estabeleceu como condição expressa da salvação. Aferraram-se à questão da afinidade de Jesus com Deus e emudeceram com relação às virtudes que ele recomendou e exemplificou.
O próprio Deus ficou apagado, ante a exaltação da personalidade do Cristo. No símbolo de Nicéia, diz-se apenas: Cremos num só Deus, etc. Mas, como é esse Deus? Nenhuma menção ali há dos seus atributos essenciais: a soberana bondade e a soberana justiça. É que estas palavras teriam sido a condenação dos dogmas que consagram a sua parcialidade para com certas criaturas, a sua inexorabilidade, o seu ciúme, a sua cólera, o seu espírito de vindita, e com que justificaram as crueldades cometidas em seu nome.
Se o símbolo de Nicéia, que se tornou o fundamento da fé católica, estava conforme ao espírito do Cristo, por que o anátema com que ele termina? Não está aí uma prova de que ele é obra da paixão dos homens? A que se deve, aliás, a sua adoção? À pressão do imperador Constantino, que dele fez uma questão mais política, do que religiosa. Sem sua ordem, o concílio de Nicéia não se houvera realizado; sem a intimidação que ele exerceu, é mais que provável que o arianismo levasse a melhor. Tudo, pois, dependeu da autoridade soberana de um homem, que não pertence à Igreja, que reconheceu, mais tarde, o erro político que cometera e que inutilmente procurou voltar atrás, conciliando os partidos. Unicamente daquela autoridade dependeu não haver arianos em vez de católicos e de não ser hoje o arianismo a ortodoxia e o catolicismo a heresia.
Após dezoito séculos de lutas e disputas vãs, no curso das quais foi posta inteiramente de lado a parte mais essencial do ensino do Cristo, a única que podia garantir paz para a Humanidade, toda gente se acha cansada dessas discussões estéreis, que só a perturbações conduziram, gerando a incredulidade, e cujo objeto já não satisfaz à razão.
A opinião geral manifesta hoje uma tendência acentuada a voltar às idéias fundamentais da Igreja primitiva e à parte moral dos ensinamentos do Cristo, por ser a única que pode tornar melhores os homens. Essa é clara, positiva e não pode abrir ensejo a nenhuma controvérsia. Se, desde o princípio, a Igreja houvesse tomado esse caminho, seria agora onipotente em vez de estar em declínio. Houvera congregado a imensa maioria dos homens, em lugar de ter sido esfacelada pelas facções.
Quando marcharem sob essa bandeira, os homens se darão as mãos fraternalmente, em vez de se anatematizarem e amaldiçoarem, por questões que quase nunca compreendem.
Aquela tendência da opinião é sinal de que chegou o momento de ser levada a questão para o verdadeiro terreno..
ALLAN KARDEC.
Fonte: O Livro “OBRAS PÓSTUMAS”, - Allan Kardec –27 a. Edição. –Instituto de Difusão Espírita , - Araras, SP. – Maio 2012.
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