CARIDADE.
Caía
a noite em paz. Crepúsculo. Horas quedas.
Horas
de solidão. Pelas planícies ledas,
A
asa ruflando inquieta, os meigos passarinhos
Recolhiam-se
à pressa, em busca dos seus ninhos!
Repousavam,
tremendo, os colibris doirados;
Pipilavam
febris no beiral dos telhados,
Reunidas
no lar caridoso e terno,
Andorinhas
gentis, tardígradas do inverno.
As
árvores senhoris, despidas dos seus galhos,
Como
braços em cruz, sangrentos nos trabalhos,
Elevavam-se
ao céu silenciosas, mudas,
Sentinelas
da dor nas regiões desnudas;
Chegavam
aos ovis as ovelhinhas mansas;
Os
risos dos aldeões e as orações das crianças
Casavam-se
formando, em rimas soberanas,
Os
poemas de luz, que nascem das choupanas,
Canções
de oiro e de sol das almas virginais,
Exalando,
a sorrir, o aroma dos trigais;
Almas
puras, em flor, relicários da essência
Da
verdade e do amor, do amor e da inocência,
Almas
feitas de luar, de cândida frescura,
Vivendo
a vida doce, imaculada e pura,
De
quem ama a existência plácida da aldeia,
Cujo
sonho é candura e a vida uma epopéia
De
louvores à dor, de exaltações, de prantos!...
Caía
a noite em paz, por entre os negros mantos
De
espessa escuridão. Sinistramente, a Lua
Rolava
na amplidão como cabeça nua,
Como
poça de sangue, horrendamente informe...
O
silêncio pesava impressionante e enorme!
Nevava
quase e a treva espessa e fria,
Era
bem a visão da mágoa e da invernia;
Enchia-se
o ar de gelo igual a açoite de aço,
Que
vibrasse, cortando, a imensidão do espaço.
E
eu pedia ao Criador da imensidade etérea,
Que
estendesse o seu manto aos ombros da miséria,
Que
agasalhasse o pobre e que desse ao mendigo
Um
frangalho de pão e um momento de abrigo;
Que
pusesse suas mãos benévolas e puras
Sobre
o abismo voraz de tantas amarguras;
Que
levasse o amor onde faltasse o lar,
Onde
sobrasse a angústia, onde andasse o penar.
Em
mim, sentia a dor dos que não têm carinhos,
Que
se vão de longada ao longo dos caminhos,
Sem
temer a hediondez das negras horas mortas,
Pedindo
a soluçar um caldo negro às portas!
E
sondava o amargor dos operários rudes,
Filhos
da obediência, anhos de mansuetudes,
Que
vão cedo ao trabalho, à lide que os consome,
Deixando
a casa entregue às penúrias da fome...
Pesava
toda a dor que o mundo inteiro cobre,
O
castelo real e a cabana do pobre,
A
dor que faz da Terra um ninho de infelizes,
Que
palpita nos reis, que anda nas meretrizes;
A
dor que dobra e vence as multidões ignaras,
Que
derruba os casais e come o pão das searas,
Quando
vi resplender nas bandas do ocidente
Uma
excelsa visão, que andava mansamente:
Tinha
nas mãos de luz ramalhetes de lírios
E
no olhar a expressão de todos os martírios:
Digna
como um juiz, fulgente como a luz
Que
dimana do amor divino de Jesus!
Seu
luminoso olhar, esplêndido e profundo,
Era
como a piedade iluminando o mundo;
Suas
faces e a fronte, alvas como alabastros,
Pareciam
do alvor das estrias dos astros...
Emitia
esplendor sua túnica de arminhos,
Dissolvendo
os cendais das trevas dos caminhos!...
Quem
és tu? – murmurei.
–
“Meu nome é Caridade,
Emissária
de Deus a toda a Humanidade:
Pairo
por sobre um ser resplandecente e puro,
Como
pairo a sorrir por cima de um monturo;
Desço
das vastidões dentro das horas mudas,
Deixo
Cristo na cruz para encontrar com Judas.
Amo
os bons e protejo as almas vis e hediondas,
Ando
por toda a terra, ando por sobre as ondas
Do
oceano a rugir sob meus pés de névoa,
Para
levar a luz, e com ansiedade levo-a
A
quem, nas aflições, chama-me em altos brados
No
turbilhão de horror de todos os pecados.
Para
mim, não existe a classe, a seita e as gentes;
Abranjo
em meu amor a alma dos continentes,
Atravesso
o oceano e atravesso os países,
Vou
onde haja a miséria e pranto de infelizes;
Sou
o farol da legião dos pobres sofredores,
Levo
sol, pão e luz, balsamizando as dores;
Conduzo
com avidez o lúcido estandarte
Do
bem, que ampara a dor e vela os sonhos darte.
Amo
o labor da ciência e amo a existência honesta
Do
ingênuo lavrador, que, em vez do sono à sesta,
Enche
com o seu trabalho as lindas manhãs claras,
E
quando a tarde chega, engendra a paz das searas.
Amo
o trabalhador, como adoro as boninas
Que
se entreabrem na estrada, adornando as campinas;
As
rosas festivais das frescas alamedas,
Que
abarrotam de olor as primaveras ledas.
Amo
o goivo e o lilás, como amo o luto e a festa,
Amo
a fera bravia, e as aves da floresta;
Guardo
comigo a dor, as mágoas e esperanças,
Idolatro
os senis, como idolatro as crianças.
Vivo
fora do plano imundo da matéria,
Confortando
o amargor, consolando a miséria;
É
por isso, talvez, que, comovida, eu ouço
Do
palácio o carpir e os ais do calabouço;
Visito
os hospitais, creches e orfanatos,
Sem
toques de clarins e sem espalhafatos;
Vou
ao cárcere escuro, entro nos palacetes,
Desço
ao antro abismal e ascendo aos minaretes.
Estou
dentro do templo e dentro dos prostíbulos,
Ao
pé do altar da fé, no sopé dos patíbulos;
Oro
em qualquer lugar, nas ermidas, nos montes,
Subo
da Terra ao Céu. Não conheço horizontes.
Não
conheço nações, corro do brejo aos sóis,
Beijo
um cadáver nu, como osculo os heróis.
Nunca
a lisonja fiz, nem recebo homenagens,
Trato
com o mesmo amor os cultos e os selvagens.
Jamais
pude escolher entre Roma e Paris,
Não
me regem as leis que regem um país.
Minha
missão é amar. Amo o templo e amo a escola,
Amo
o bem que alivia, amo o bem que consola.”
“Caridade!
– tornei. – Por que volves ao mundo?
O
mundo é o mesmo caos, o mesmo charco imundo.
A
Humanidade é a mesma, alma de fariseus,
Que
não te quer, nem quer o amor do próprio Deus!
O
homem não se mudou. E a tola sociedade
É
o nojento paul da criminalidade,
Lodo
fenomenal de descrença e malícia.
Vai!
consulta as prisões e consulta a polícia.
Onde
puseste a luz, onde fundaste a escola,
O
homem pôs o missal, as batinas e a estola.
Onde
foste ensinar cantigas às ceifeiras,
O
homem fez barregãs que se vendem nas feiras!
Onde
andaste a criar a cidade e os impérios,
Ele
fez podridões de imundos cemitérios;
Onde
criaste o ideal e a inspiração divina,
Fez
a bomba explosiva, a forca e a guilhotina.
A
sociedade vil é quase a mesma Impéria,
Rindo
na podridão, transudando a miséria.
Morre
o bem, morre o amor, causa nojo a política,
Ressumbra
asco e pavor a velha sifilítica,
Que
brada sem cessar: – “Inda grita a canalha?
Abra-se-lhe
a prisão, jogue-se-lhe a metralha.
E
se alguém reclamar, há canhões na Alemanha;
Se
o canhão não chegar, há mosteiros na Espanha,
Onde
existe o grilhão dentro de escuras celas,
Celas
que são prisões, cheias de sentinelas.
E
se o povo chorar, que se açoite esse povo!
Alguém,
que reclamar, pague um tributo novo.
Mate-se
a mocidade, asfixie-se a infância,
Propague-se
impiedade, espalhe-se ignorância,
De
nada serve o livro a um povo sempre cego.
E
se a fome vier, ponha-se a honra ao prego.
Para
que se não veja a ruína e os cemitérios,
Se
o estrangeiro chegar – Bailes nos ministérios!
Músicas
sobre a dor, flores sobre os lameiros,
Girândolas
ao ar, honras aos forasteiros!
Cubram
sedas a lepra, aromas os fedores,
Fogo
a quem mendigar! morte a quem tiver dores!..
Ao
raiar a manhã, toque-se para a missa,
Que
esta plebe é de cães, que esta plebe é submissa.
E
esse povo infeliz dorme pelas calçadas,
Almoça
e ceia o luar, morre sob pauladas –
E
à podre sociedade é igual a religião,
Que
encarcera o ideal dentro da Inquisição!
Principalmente
Roma, a esta nada escapa,
Demonstrando
o conflito entre Jesus e o Papa:
Jesus
amava a luz, o Papa o oiro vil,
Jesus
amava o pobre, o Papa a Rotschild!
Que
queres, Caridade? o mundo é sempre assim,
Sacrifica
um Abel para aceitar Caim!”
-
“Antes de tudo, amigo, eu não sei, não discuto;
Eu
só quero saber onde há miséria e luto.
Raciocina,
poeta!
A
alma da caridade
Abomina
o rumor que alimenta a vaidade;
Para
o seu labutar, toma vestes singelas;
Para
fazer o bem, corre o fecho às janelas.
Não
lê Anacreonte e ignora Petrarcas;
Não
reconhece a lei que emana dos monarcas.
Nunca
soube notar, nem sabe discernir
Qual
deles foi maior, se Goethe ou Shakespeare;
Se
houve o pincel de Goya e o buril de Bordalo,
Se
Calígula quis endeusar um cavalo;
Se
o nome de Mafoma é o mesmo que Maomet,
Se
houve no tempo antigo uma arca de Noé;
Se
a Patti cantou bem pelas festas mundanas,
Se
viveram maus reis, entre más soberanas;
Não
entende Voltaire, nem más literaturas,
Somente
lhe interessa a sorte das criaturas.
Nunca
soube enxergar se há Lutero e Jesuítas,
Sabe
somente ver as dores infinitas.
Não
vai a Roma ver o Papa que se cobre
De
fulgentes milhões para humilhar o pobre.
Não
vai à Terra Santa em peregrinações,
Jamais
toma lugar para fazer sermões.
Passa
no mundo a pé, jamais anda de sege,
Nem
sabe distinguir entre um pária e Carnegie.
Nunca
aos concílios foi dar suas opiniões,
Nunca
reza em latim, nunca fez procissões.
Jamais
focalizou questões eleitorais,
E
não vai desfolhar misérias nos jornais.
Entra
no lupanar, não lhe estorva a política,
Não
lhe pode abalar a opinião da crítica.
Nunca
viu povoléus, nem divisa a ralé,
Nem
problemas sociais, nem dogmas de fé!
Rejeita
a excomunhão, jamais amaldiçoa,
Sabe
somente que ama e também que perdoa.
Sabe
apenas que há pranto ao longo dos caminhos,
Que
falta o amor e o pão, água e calor nos ninhos.
Corre,
sem se cansar, desde o nascer da aurora,
Para
buscar a dor da orfandade que chora.
Reconhece
na treva a fonte dos pecados
E
abraça com carinho os grandes torturados.
Sabe
onde falta sol, onde escassa é a saúde,
Onde
se mete a flor excelsa da virtude.
Olha
sem se anojar, mágoas, misérias, dor,
Não
conhece opinião, segue a Nosso Senhor!
Anda
no Novo Mundo, corre por toda a Europa,
Mendigando
uma luz e um bocado de sopa,
Luz
para desfazer a baixeza de instintos,
Sopa
para matar a fome dos famintos.
Foge
da discussão, não está nas pelejas,
Nem
no ambiente hostil e estreito das igrejas.
Sabe
amar e querer flores e passarinhos,
Os
mendigos e os reis, os palácios e os ninhos!
Tem
abnegação. Sabe rasgar o peito,
E
escrever com seu sangue a Justiça e o Direito!
Sabe
o amor. Sabe o bem. A alma da caridade
Sabe
endeusar a luz e adorar a verdade.
Vai
a todo lugar, recôndito e diverso.
Não
existe num mundo. Existe no Universo.
Poeta
amigo, adeus! Há muito que me espera
A
imensidão da dor. Procuro a pomba e a fera.
Tenho
muito a prestar às ovelhas transviadas,
Que
ouvem as tentações do beiral das estradas.
É
preciso que eu vá visitar os covis,
Amparar
o chacal, as aves e os reptis;
Necessário
é que eu siga em minhas romarias,
Procurando
os pardais, melros e cotovias.
Vou
subir a colinas e descer aos valados,
Caçando
o pranto e a dor dos pobres desgraçados.
Chama-me
o sol redor, chama-me a orfandade,
Necessário
é lhes leve a vida e a liberdade.
Se
tua alma quiser inda encontrar-me um dia,
Desce
ao antro sem paz, donde foge a alegria;
Vai
sem medo e receio à lôbrega mansarda,
Onde
tarda a saúde e onde o conforto tarda.
Vai
às roças louçãs nas alvoradas claras...
Estou
com o lavrador na tarefa das searas,
Como
do seu farnel, tomo o arado e a charrua,
Lá
me ponho a lidar e de lá volto à rua,
Para
guiar os maus, para guiar felizes;
Minha
missão é amar os vermes e os países!...”
Muito
tempo passara e a noite inda era escura.
Noite
de neve atroz, noite de desventura!
Foi-se
a linda visão, dissipando as neblinas,
Repartindo
o seu pão de carícias divinas.
Tudo
voltou à paz silenciosa e calma!...
O
inverno e o pesar; e aos olhos da minhalma,
O
mundo famulento, a Terra, parecia
O
planeta da sombra e a mansão da agonia!
Guerra Junqueiro
ABILIO Guerra Junqueiro, poeta português, nascido em
1850 e desencarnado em 1923, é assaz conhecido no Brasil como épico dos maiores
da língua portuguesa e admirado por quantos não estimam na Poesia apenas o
malabarismo das palavras, mas o fulgor das idéias. Notável, sobretudo, pela sua
veia combativa e satírica, vemos, por sua produção de agora, que os anos do
além túmulo não lhe alteraram a sadia e lúcida mentalidade, nas mesmas diretrizes.
E esta circunstância é tanto mais notável quando o Romantismo se ufana de uma
irreal conversão ín extremis.
Fonte: PARNASO DE ALÉM - TÚMULO -
AUTORES DIVERSOS. - Chico Xavier- Editora FEB. Rio de Janeiro RJ - 1935.
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