1902 – 1933
Há oito ou nove anos, ao entrar na
Academia para a nossa honrada sessão das quintas-feiras, encontrei o átrio
rumoroso e festivo. Não havia musica. Não havia flores. Mas havia mais do que
isso, porque o sonorizavam e coloriam as alegrias da mocidade. Mulheres lindas,
e poetas. Achavam-se, em suma, em visita à casa austera das letras, quatro ou
cinco poetisas e declamadoras, que haviam sido recebidas à porta, com algazarra
fraterna, por Olegário Mariano, Adelmar Tavares e Luiz Carlos, autores, no
Brasil, dos mais belos versos líricos daquele tempo. À minha passagem de
prosador desconfiado e soturno, Olegário me deteve, ruidoso e gentil:
- Vem cá... Eu quero apresentar-te uma
pessoa que te admira muito...
Chamou:
- Cinira... Vem cá!
Era uma linda moça, quase menina. Morena,
grandes e profundos olhos turcos, de veludo negro, trazia nos traços e, nessa
tarde, no vestuário, todos os atributos de uma jovem princesa oriental. Um
gorro da cor dos olhos, posto garridamente de lado sobre a cabeleira farta e
escura, completava-lhe a graça boêmia, de cigana adolescente. Uma alegria
estouvada de canário solto, assinalava-lhe os gestos, e lhe gorgeava no
sorriso, que lhe vinha da boca fresca, e do marfim dos dentes miúdos. Toda ela
era, enfim, graça infantil e atordoada, de borboleta que acaba de sair da
crisálida e penetra num rosal, tonta de sol, em luta com o vento em manhã de
primavera.
Carmen Cinira acabava de celebrar, parece,
as suas núpcias com a liberdade, e sentia toda a volúpia da vida, vendo-se
moça, inteligente, e formosa. E essa impressão contribuiu para que eu lhe
apertasse a mão enluvada sem uma palavra de louvor, sem os gabos a que, de
certo, se acostumara e que, efetivamente, merecia, pelos encantos da sua
figura. Quando os homens começam a entrar na velhice, não compreendem mais as
vozes da mocidade. Foi assim, calado, que atravessei o vestíbulo tumultuoso,
deixando-o entregue às mulheres e aos poetas, que têm, na Terra, o dom da
juventude perpétua.
Tempos depois, vim á saber que a linda
moça de olhos turcos que eu vira à entrada da Academia era casada, e que se
havia separado do esposo para dar maior liberdade ao coração e ao pensamento.
Era uma das inumeráveis libélulas da sociedade moderna, que se não conformam
com o ritmo da vida antiga, e querem beber, de asas livres, todo o ouro do sol
e todo o perfume da Terra. Havia lido os romancistas e os poetas. E o lar lhe
parecera pequeno. Ideára a felicidade descrita nos livros e, como não a
encontrara na quietude da casa modesta, e na intimidade do homem escolhido,
correra para a planície, procurando reter entre as mãos a sombra da nuvem que
passa no céu. Ignorava ela, como centenas de outras ignoram hoje, e milhares
ignorarão amanhã, que a mulher é frágil, demais, para afrontar, sozinha, as
tempestades da vida, e que se faz mister a cada uma um preparo antecipado, para
não naufragar no oceano.
Em um estudo publicado em 1931 registrava
o escritor comunista Fedor Gladkov um fenômeno observado na Rússia soviética,
entre os mineiros dos Urais. Não possuindo maquinismos com que retirasse das
minas o carvão nelas acumulado, empregava o governo, para isso, o braço humano.
Abertas em sentido horizontal, as galerias apresentavam, às vezes, inclinações
consideráveis. E os homens, com o cesto à cabeça, viam-se na contingência de subir,
às vezes, dois quilômetros de ladeiras subterrâneas para trazer à boca da mina
a sua carga de combustível. Os mineiros antigos, embora mais vigorosos, não
resistiam jamais a trabalho tão fatigante. Os adolescentes, porém, levavam a
termo o sacrifício. Como não tinha conhecido as facilidades antigas não podiam
estabelecer o confronto, e realizavam sem queixa a tarefa moderna. Os outros,
no entanto, sucumbiam, porque haviam vivido em tempo melhor... Com a mulher tem
sucedido o mesmo na sociedade contemporânea. As moças que se vêm criando em
liberdade, olhando a vida face a face desde as primeiras horas da adolescência,
sentem-se à vontade no ambiente tumultuoso que o mundo agora oferece. Vendo-as
alegres, e felizes à sua maneira, as mulheres procedentes da sociedade que
precedeu à Grande Guerra imaginam que poderão viver com a mesma facilidade.
Esquecem-se que os seus pulmões foram formados com capacidade para outro clima.
Olvidam que elas são peixes de outra água. E deixam o lar. E dissolvem a família.
E vão tombar, lá fora, vencidas, sob os pés da multidão nova, que passa
cantando... Vão em busca da felicidade, abandonando o único lugar em que ainda
podiam encontrá-la.
Carmen Cinira era moça, mas procedia,
parece, de família burguesa, e recatada, que a educara para a intimidade do
lar, sem ambições de glória nem sonhos de liberdade... E pagou à vida, e ao
mundo, o imposto que lhes devia. Não tendo tido seguimento entre nós o conhecimento
por essa apresentação, não nos cumprimentamos sequer, durante três anos. Eu lhe
parecera, talvez, orgulhoso demais, como pareço a alguns com a minha timidez,
ou estúpido demais, como pareço aos restantes, pela minha taciturnidade. Até
que, um dia, fomos apresentados de novo, na livraria Freitas Bastos.
Conversamos. A moça que eu vira não era, porém, a mesma. As rosas da face,
naturais, outrora, eram agora de papel. Havia alguma cousa de desânimo, de
desencanto, na sua pessoa e nas suas palavras. O sorriso tornara-se, nos lábios,
que o “rouge” coloria, forçado e triste. E outra vez nos separamos.
Até que há um ano, nos falamos pela
terceira e última vez. Foi, ainda, na livraria. Nova apresentação. Mas a menina
de há oito ou nove anos havia, nela, desaparecido. Aquela alma, agora em
abandono, me despertou simpatia, me causou pena. Eu não nasci para amigo dos
felizes, mas para confidente dos desgraçados. E foi quando Carmen Cinira
descobriu que eu tinha uma alma, e eu compreendi que ela possuía um coração.
Palestramos dez ou quinze minutos. A sua existência, que fora um roseiral, era,
agora, um deserto. Uma desilusão profunda e irremediável devastava-lhe as
profundidades do ser. A tuberculose minara-lhe os pulmões, envelhecendo-lhe o
corpo jovem. Considerava-se traída pela Vida. E tinha rugidos de revolta contra
si mesma, rugidos de leôazinha ferida, cujas garras não faziam mal a ninguém...
Há dias, noticiaram os jornais, em linhas
ligeiras, a morte da poetisa Carmen Cinira. Duas ou três pequeninas crônicas
vieram depois. E nada mais. Eu quero, porém, deixar-lhe aqui, por minha vez,
estas palavras de respeito, de pena e de saudade. E deixo-as não como lisonja a
ela que está morta, mas como lição às almas como a sua, que ainda se debatem no
mundo.
O vento da primavera arrebatou a libélula,
e partiu-lhe as asas coloridas e franzinas no espinho das roseiras agrestes. E
a jóia voejante, caiu morta.
Chorem-na as rosas de que ela foi um
pouco, vida breve e atormentada, a companheira e irmã.
Felizes os mortos que, uma semana depois
de sepultados, ainda têm amigos na Terra! – foi a exclamação que me veio à
boca, e nela permaneceu amortalhada em silêncio, há quatro dias, ao receber
meia dúzia de cartas analisando a crônica ligeira, aqui publicada, sobre Carmen
Cinira.
A linda e jovem poetisa possuía, na verdade,
amigas numerosas, e dedicadas. E foram elas que correram a retificar,
amavelmente, alguns dos traços biográficos da sua desventurada companheira, e a
oferecer informações outras sobre a sua vida e a sua morte, mais interessantes,
na realidade, uma e outra, do que a mim me pareciam.
Uma das retificações versava sobre o
estado civil da morta. Carmen Cinira não era, como me haviam informado,
divorciada, mas viúva, desde o segundo ano de casamento. O esposo, um atleta,
notável jogador de futebol, morrera tuberculoso, quando contava ainda, e
apenas, vinte anos. Moça e bonita, seu coração bateu, com certeza, novamente,
como o pássaro que tombou da altura, quebrou as asas e ensaia inutilmente o
vôo. Os seus olhos diziam, porém, já, aos homens experientes, o mal que lhe
devorava os pulmões. E é de imaginar o que seria o seu tormento, a sua agonia
moral, vendo estampada em todas as fisionomias o santo horror da sua
intimidade. O seu beijo devia ser um fruto maravilhoso, com todo o gosto de
pomo fresco. Mas esse fruto, de sabor incomparável, trazia, na polpa, o veneno
fatal. Dentro dele estava a morte. À semelhança de Helena, filha de Tindaro,
que, por onde ia, levava a destruição, ela sentia, talvez, que não podia amar,
porque o seu amor lavraria, contra aquele a quem ela o consagrasse, a sentença
irremediável. O seu carinho, leve como uma pluma, teria, si ela o dedicasse a
alguém, o peso de uma condenação.
Já alguém imaginou, na verdade, o que seja
o tormento moral de uma linda mulher tuberculosa? Já alguém calculou a tragédia
de consciência da criatura moça que, não querendo sufocar no coração a chama do
seu desejo, sabe que vai pagar com a semente da morte aquele que lhe trouxer a
semente da vida? Carmen Cinira, viúva, aos vinte anos, enfermeira devotada do
esposo tísico, sentiu que se achava condenada à morte na plena glória da
juventude. E voltou-se, de repente, para a outra vida. Dedicando-se ao
Espiritismo, procurou, nele, a consolação, o conforto. Caminhava para o túmulo,
dizem-me os seus íntimos, quase feliz, e com uma grande doçura de coração. Dois
meses antes de falecer era, já, e apenas, a sombra do que fora. Levada para São
José dos Campos, em São
Paulo , quis vir morrer na sua cidade natal, junto dos que lhe
eram afeiçoados. Raro era, já, o dia em que uma papoula de sangue lhe não vinha
desabotoar nos lábios pálidos, apresando o termo inevitável daquela vida. Na
véspera da morte, pediu papel, e um lápis, e escreveu, então, este soneto, em
que exprimiu toda a força da sua fé e da sua resignação:
VIDA
Vida, que és boa para tanta gente,
E a tanta gente embriagas de prazer:
Para mim foste má, foste inclemente,
E deixaste-me exausta de sofrer!
Quando, às vezes, recordo, tristemente,
As agonias do meu pobre ser,
Tu me causas pavor... De tão descrente,
Alegro-me, ao pensar que vou morrer!...
Caiba ao destino a culpa de ter sido
A minha mocidade um só gemido;
Mas, sei que o meu faminto coração,
Na morte, que, bem sinto, virá breve,
Há de achar o carinho, que não teve,
E a paz, que tanto mendigou em vão!...
A sua alma havia-se tornado, de há muito,
profundamente religiosa. Para esquecer os sofrimentos que a Vida lhe oferecia
no seu cálice, elevava-se até aos pés do seu Deus, e a ele se entregava
neste...
No dia da morte, quis manifestar os seus
últimos desejos na Terra. Chamou a velha mãe, e disse-lhe, tranqüilamente:
- A morte não tarda... Quando ela chegar,
não quero mortalha fúnebre... Vistam-me um dos meus vestidos brancos... Si não
encontrarem envolvam-me num lençol... O meu caixão deve ser pobre, de terceira
classe... Não desejo lágrimas, nem missas, nem orações... Quero, apenas, que,
os que me quiserem bem, se concentrem, e pensem em mim...
Horas depois, tendo piorado, pediu que
mandassem chamar as suas irmãs. Despediu-se delas, serenamente, com palavras de
consolo e resignação. Estava certa de que o espírito de seu pai, falecido há
muitos anos, viria ao encontro do seu. De súbito, empalideceu mais. Todos sentiram,
em torno, que era a morte que chegava. Os lábios da moribunda descerraram-se,
porém, e ela exclamou, numa voz em que havia qualquer cousa de intenso júbilo:
- Meu pai chegou... Eu o estou vendo... Eu
o estou vendo...
E quase num arrebatamento:
- A vida é um cárcere... A morte é a
liberdade!...
Uma pequena rosa de sangue veio-lhe, mais
uma vez, à boca miúda. Os presentes ajoelharam-se. Estava morta.
O obscuro homem de letras que escreve,
hoje, esta nova crônica sobre a jovem e formosa poetisa que tanto sofreu, não a
seguiu jamais, quando ela parecia feliz. Não foi do seu séqüito. Não era da sua
amizade. A missão desse escritor, na Terra, é, porém, confortar os tristes e
enfeitar a sepultura dos mortos.
Recebe, pois, ainda, Carmen Cinira, estas
palavras de saudade e reparação. Elas são o pólen da flor que ele vem
depositar, comovido, sobre a úmida areia do seu túmulo.
Nota
do Editor:
Cinira do Carmo Bordini Cardoso é o nome
completo da poetisa, que nasceu em 1902, tendo desencarnado em 30 de Agosto de
1933. O livro “Parnaso de Além-Túmulo” traz algumas de suas poesias, obtidas
através da mediunidade de Chico Xavier, dentre as quais, destacamos:
O Viajor e a Fé
- “Donde vens, viajor triste e cansado?”
- “Venho da terra estéril da ilusão”.
- “Que trazes?”
- “A miséria do pecado,
De alma ferida e morto o coração.
Ah! Quem me dera a bênção da esperança,
Quem me dera consolo à desventura!”
Mas a fé generosa, humilde e mansa,
Deu-lhe o braço e falou-lhe com doçura:
- “Vem ao Mestre que ampara os
pobrezinhos,
Que esclarece e conforta os sofredores!...
Pois com o mundo uma flor tem mil
espinhos,
Mas com Jesus um espinho tem mil flores!”
(Carmen Cinira, Espírito)
Fonte: GRANDES GIGANTES DA DOUTRINA
ESPÍRITA. – INTERNET.
RHEDAM. (mzgcar@gmail.com)
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