“UM QUADRO DA QUARESMA”
Entre lamentações e estrídulas matracas,
Num cenário infantil, feito de gesso e lacas,
Representa-se a peça antiga da quaresma...
O pobre Senhor-Morto, um pálido abantesma,
Talhado de encomenda, em tinta espessa e forte,
Dorme grotescamente o sono dessa morte
De teatro burlesco, anual, que se repete,
Como as grandes funções do entrudo e do confete.
Imóvel, sob a luz esdrúxula das tochas
Que ilumina esse caos de tintas rubro-roxas,
É o ator da paixão, a vítima e comparsa
Do Papa, o explorador santíssimo da farsa,
Paródia de uma dor sublime e incomparável,
Filha da estupidez bisonha e condenável,
Que a Igreja representa, arrecadando esmolas,
Com latim, cantochãos, bandeiras e sacolas.
A função quaresmal prossegue. A multidão
Espera com ansiedade o clássico sermão.
Numa fantasmagoria esplêndida de aroma
Dos incensos do altar, sobre o púlpito assoma
Uma figura heril de abade gordo e enorme,
Coquelin tonsurado, obeso, desconforme,
Que grita com estentor:
“Caríssimos Irmãos!
Nós somos sobre a Terra os únicos cristãos.
Fora das concepções altíssimas da Igreja,
Existe tão-somente o Inferno que despeja
O mal e as tentações no espírito perdido;
Rezai! que atualmente o mundo pervertido
Pretende esfacelar os dogmas romanos,
Sentinelas da fé, há quase dois mil anos!
Não busqueis progredir nas coisas transcendentes,
Porque o Papa é senhor de céus e continentes
E o Sílabus proíbe a evolução de tudo!
Eu só vos peço a fé, porquanto a fé é o escudo
Que vos há de livrar dos gênios tentadores.
Evitai conviver com os livres pensadores!
A análise conduz à escuridão do Averno,
Voltaire e Galileu são ministros do Inferno,
Calvino, Comte, Wesley, seus embaixadores;
Das chamas infernais, criaturas inferiores
Dirigem, certamente, o espírito moderno.
Precisais cultivar o nosso dogma eterno,
De eterna submissão ao Papa que é infalível.
Toda ordem de Roma é boa e indiscutível.
É preciso antepor, a toda a Humanidade,
Sentimentos de fé e catolicidade.
Necessário se faz prender quem raciocine.
Reformistas quaisquer?... Satanás que os fulmine
A falta de fervor tem feito heresiarcas,
Tem até corrompido os padres e os monarcas.
Obedecei à Igreja em sua Santidade,
Que é o traço de união do arcano da Trindade.
O dogma é uma lei benigna e sublime,
Sofismá-lo, enformá-lo, é cometer um crime.
A Humanidade está sob o império do demo;
Oremos pelo mundo em desconforto extremo.
Vivei, caros irmãos, em santa penitência;
As mortificações recebem da indulgência
Os prêmios celestiais na Eterna Beatitude.
Sede firmes na fé, contentes na virtude,
Amando a caridade, a humilde singeleza,
Como Jesus amou a glória da pobreza!”
Condenando a Ciência, a Luz, a Liberdade,
E abominando o Cristo, o Senhor que ele esquece,
Terminou a oração, rogando que se desse
Uma estola ao Progresso e um véu à Humanidade.
Com um aceno abençoou, segundo o gesto em uso,
Resmungando um latim exótico e confuso;
E depois de exercer seu santo ministério,
Procurou lestamente o calmo presbitério.
Aguardava-o o jantar de finas iguarias:
Pratos de ostentação, recheios, ambrosias,
Licores, moscatéis, confeitos, doces raros,
Opíparo jantar regado a vinhos caros.
E após se abastecer pantagruelicamente,
Em paz sacramental, seu cérebro indolente
Desejou meditar nas cenas do Calvário...
Mas o sono roubou-lhe as preces e o breviário.
Terminada que foi a sacra pantomima,
Esquecido Jesus, olvidou-lhe a doutrina.
Sereno, adormeceu sem pensar que pusera
Em cada coração um coração de fera,
Com o seu rubro sermão, cavando um negro abismo,
Propagando a cegueira, a guerra e o fanatismo.
Olvidou o que Jesus obrara com o exemplo,
Dos atos a lição, da caridade o templo,
Sem artigos de fé, sem bispo e Vaticano.
Não se lembrou que houvera o bom samaritano,
Porque a verdade pura, o lídimo Evangelho,
Era um livro escurril, inadequado e velho.
Da doutrina cristã, a sacrossanta essência
Ficou em pregação de mágica eloqüência.
Jesus apenas fora a máscara piedosa,
Para tanta extorsão impune e criminosa.
Por isso, ó meus irmãos do altar e da batina,
A Igreja que foi pura e que já foi divina,
Morre sem remissão de horrível carcinoma,
Nos pântanos letais e lúgubres de Roma,
Lá onde a cupidez fatídica se entrapa
E morre às próprias mãos sacrílegas do Papa!
Guerra Junqueiro
ABILIO Guerra Junqueiro, poeta português, nascido em 1850 e desencarnado em 1923, é assaz conhecido no Brasil como épico dos maiores da língua portuguesa e admirado por quantos não estimam na Poesia apenas o malabarismo das palavras, mas o fulgor das idéias. Notável, sobretudo, pela sua veia combativa e satírica, vemos, por sua produção de agora, que os anos do além túmulo não lhe alteraram a sadia e lúcida mentalidade, nas mesmas diretrizes. E esta circunstância é tanto mais notável quando o Romantismo se ufana de uma irreal conversão ín extremis.
Fonte: PARNASO DE ALÉM - TÚMULO - AUTORES DIVERSOS. - Chico Xavier- Editora FEB. Rio de Janeiro RJ - 1935.
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